A terra treme ao rugir da máquina. Suas fumaças turvam cada vez mais o horizonte: espessas névoas de indiferença. O imenso engenho não serve para nada, a não ser devorar. A máquina só produz uma coisa, chamada ilusão. Disformes ilusões de grandeza, separação, permanência. Se você, humano recém chegado à cena, logra participar da máquina com alguma pequena função, você sobrevive. Do contrário, ela te devora. Se você acrescenta à máquina um novo recurso, ínfimo aparato colorido, você prospera. Os crédulos chamam isso de sucesso. Guardado como tesouro, o sucesso se degenera em patologias: poder, pilhagem, usurpação. A máquina opera em módulos chamados megalópoles. Cada módulo suga a energia do planeta diuturnamente, e despeja sobre ele seus dejetos: abjetos. O combustível da máquina é a vida orgânica, organizada em óleo, plantas e pessoas, algumas delas humanas. A vultosa estrutura é feita de solo, mineral abocanhado de montanhas. Muitos dizem que a máquina é tudo o que existe. Ela já devorou culturas autóctones inteiras nos cinco continentes. A máquina vem sendo montada com engenho, e sacrifício incontável. Ela irá te oprimir violentamente, a menos que você seja ungido com o imunizante, chamado privilégio. Por definição, o imunizante é escasso, e os ungidos darão a vida por ele: mérito. A máquina tem um lubrificante secreto, chamado descaso. A cada dia, o invento gira mais rápido e alarga seu rastro grandioso de ruína. Se tornou tão voraz que já quase não restam florestas. Onde a máquina mais avança, a atmosfera já é intragável. Em breve os oceanos terão mais plástico que peixes. A máquina tem um manual de montagem chamado capital. Seu manual de operação é chamado indústria. Quem aprecia esses manuais desenvolve um hábito vil. O hábito se chama ganância, e ele te devora por dentro. Em comunidade poderíamos resistir, mas corremos sós, para sobreviver. A invenção tritura a noção de bem comum: carcaças de fraternidade secas ao sol. Afetos comidos de verme. A máquina tem apetite insaciável e hálito de morte.
Eis a nossa missão: desmantelar a máquina. Peça por peça. Não teremos manual, mas um fio condutor chamado memória: a máquina é invenção muito recente. Comecemos por parar de lubrificar, polir e aprimorar o arranjo. Nos seus escombros há de se plantar jardins. No seu rastro permitir florestas. Fertilizar terras arrasadas com o mais rico humus, chamado empatia. Há de se escutar as árvores, ouvir sua voz de generosidade incontida. Libertar rios de vida das garras concretas da máquina. É nossa tarefa de gratidão por havermos ganhado um lugar aqui. É nossa maior honra: despertar, fincar os pés no chão e lutar por nossa casa.
Ocupar ruínas: uma estratégia de viver com um pouco mais de liberdade? Esse ano eu tive a sorte de poder assistir ao filme Monster, do cineasta japonês Hirozaku Kore-eda (Kore-eda Hirokazu, no original). E eu tô citando esse filme aqui por conta da inusitada escolha que você fez da imagem pra apresentar a sua ideia: a ruína de um trem, já compondo com a paisagem mais que humana.
https://64.media.tumblr.com/421921e55cbe65dc2e78fffb0508f7f0/ec22c02cf3bf433f-97/s540x810/93ce2ba7a68574087b76b517a5e892c525175f92.gif
No filme, dois meninos encontram um trêm como esse da sua imagem: uma ruína ignorada pelo resto da sociedade: uma máquina abandonada pela máquina. E, protegida por essa ruína, eles têm a oportunidade maravilhosa de desfrutar de momentos de singela liberdade. E isso talvez os aproxime de Alexander Supertrump, e seu magic…