Manifesto Artesão (matéria para a Revista Francisca de Abril 2025)
- Lucas Puttini
- 4 de abr.
- 4 min de leitura
Atualizado: há 23 horas

- Vamos lá para cima, de onde a vista é melhor, convidou o corretor de imóveis. Nós que estávamos de volta ao Brasil, andávamos decididos a morar no interior, uma cidade pequena, para poder viver numa casa, adotar nossos filhos, criar um ateliê de marcenaria, quem sabe produzir um pouco da nossa comida. Na subida íngreme pelo terreno gramado, eu me virei para começar a procurar a tal vista no horizonte distante e, andando de costas, pisei com tudo num galho de araucária, liso, enorme, pesado. Um tombo cenográfico, impecável, com direito a pernas pro ar e gargalhada da plateia. Eu tomei a aterrissagem como um acontecido auspicioso. De repente era a terra me chamando, era a árvore me desconcertando, me dizendo pode ficar, você chegou.
Quando eu deixei meu emprego de engenheiro na indústria aeronáutica eu não tinha a menor ideia do que viria adiante. Tinha vivido 10 anos entre Brasil e Canadá, aprendido um tanto de coisas, mas o sentimento de vazio e falta de sentido era crescente, frustrante. Um incômodo difuso com quase tudo, um enorme sem-porquê que eu não sabia muito bem explicar.
Hoje eu sei. Tendo virado marceneiro, passado a última década nessa lida muito concreta entre pranchas e serragem, eu sinto com muita clareza o que foi para mim descobrir esse ofício. Ter desafiado o corpo como um todo: mente e mãos engajadas simultaneamente no que é presente, simples e concreto. Passar a prestar atenção numa matéria prima, e nos ciclos naturais em que ela se forma. Atentar para as florestas e suas árvores é um daqueles presentes que deixam uma criança maravilhada por toda a sua infância. Enxergar com mais clareza a insanidade do nosso mundo em que o ato de consumir foi elevado a um patamar existencial. Poder reparar como a experiência de construir alguma coisa com suas próprias mãos pode funcionar como um antídoto para o paradigma inebriante do comprar - uma pequena gota do bálsamo da presença, um mínimo frasco da medicina do cuidado. Entrar em diálogo com uma obra que você pode chamar de sua: seu material, seu processo, suas escolhas. Encarar de frente suas limitações, tudo o que você ainda não sabe fazer, e tudo aquilo que seu corpo humano nunca fará a despeito de todo o treino. Começar a entender que o valor da sua peça artesanal está exatamente na imperfeição, na unicidade do que é feito por pessoas operando em conjunto com a natureza. Entender que não somos máquinas afinal, e celebrar cada momento de criação como completo na sua unicidade. Fazer amigos entre os artistas, pessoas inquietas que escolhem todos os dias buscar algo de belo, de inspirador ou de injusto no mundo para que a gente veja. Para que a gente, quem sabe, se veja. Ocupar no mundo o lugar de um marceneiro, que tantas vezes está próximo do lugar de um pedreiro, um motorista, uma lavadeira. Sentir na pele a dificuldade de ter seu trabalho entendido e valorizado, atravessar muitos anos com uma compensação aquém do razoável, tentar chegar ao fim do mês enquanto seus filhos crescem e merecem boa comida, boa escola e lazer. Ter um vislumbre de quanto a minha caminhada foi feita sim de trabalho, mas também de privilégio. Virar marceneiro para mim foi essa revelação: um ofício simples e honesto que me deu uma alegria sem tamanho, e ao mesmo tempo uma nova lente para entender o mundo.
Esse foi o pano de fundo que nos norteou na criação do documentário Manifesto Artesão – da árvore, a cadeira. Produzido em Campo Alegre, ao longo de 2024, com recursos da Lei Federal Paulo Gustavo de Incentivo à Cultura, o curta-metragem capturou um pouco da nossa rotina na Marcenaria do Bosque, e um pouco da nossa forma de pensar nos ofícios tradicionais nos nossos tempos.
É notável a rapidez com que nós - pessoas – fomos substituídos por máquinas nos processos de fabricação de praticamente tudo. De roupas a cadeiras, das nossas casas à nossa comida – em algumas poucas décadas os itens realmente artesanais deixaram de ser a maioria para se tornarem uma raridade. Ou talvez um artigo de luxo. Toda essa história da mecanização e automação dos processos produtivos nos afetam a todos de muitas formas, e seria muito ingênuo imaginar que não faríamos uso das novas possibilidades que as tecnologias atuais apresentam. O que me parece, entretanto, ainda mais pueril é a atitude geral de assimilar todas as novidades como nos sendo benéficas, ou interessantes, ou preferíveis, na ausência de um pensamento interessado e crítico acerca de como os novos processos nos modificam enquanto indivíduos e coletividades. O que tenho percebido como artesão da madeira é o grau de alienação e distanciamento total que temos desenvolvido do mundo natural, concreto, que mata nossa fome e preenche nossas casas. Deixamos de ser fazedores como foram nossos avós – de enxovais, bolos, conservas, móveis, brinquedos - para nos tornarmos compradores ou, quando muito, observadores do mundo produtivo. A produção em escala industrial de tudo parece deixar o artesão obsoleto, e nos relegar ao lugar de comparar rótulos e especificações, e escolher entre alternativas tão numerosas que muito mais nos confundem e angustiam do que nos satisfazem.
Em resposta e esse contexto, e especialmente após os anos da pandemia, muitos de nós têm observado um ressurgimento no interesse pelos ofícios artesanais – a marcenaria, a tecelagem, a cerâmica, a culinária. Talvez toda a distância do mundo natural, toda a assepsia dos corredores dos shopping centers, toda a virtualização do trabalho e das relações sociais tenham começado a nos despertar um pouco para o que sempre fomos: fazedores, inventores, criadores do mundo material incansavelmente instigados a entender, conectar, aprimorar. Talvez estejamos testemunhando um renascimento da vontade de construir por nós mesmos, de resistir ao lugar de compradores passivos, de nos alegrarmos com a experiência do fazer bem feito. Eu pessoalmente vim a acreditar que essa experiência tão rica do tocar o mundo como artesãos pode ser formativa para todos nós de uma forma importante, dado o estado de crises compostas do mundo que habitamos. Queremos seguir trabalhando para ajudar a passar adiante o ofício do trabalhar a madeira para novas gerações, novos públicos, novos lugares na nossa sociedade. Seguir formando crianças de todas as idades, curiosas, que se perdem com blocos coloridos na alegria simples do criar.
Documentário Manifesto Artesão – da árvore, a cadeira. 40 minutos, Livre, 2024.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=xS_KPKG_Go8
*matéria especial para Revista Francisca, edição 57, abril/2025
Commenti