Porque fazemos coisas com as nossas mãos? Que importância isso tem?
Essa é a pergunta que me ronda nos últimos anos. E ela me persegue mesmo, a indagação viva. Me bota pra pensar e me desconcerta, o que é bom. Ou vai ver que conserta. Vem desfazendo as distinções entre estudo, trabalho e lazer, confundindo mesmo, fundindo essas matérias. Uma pergunta, um chamado forte e claro.
Me vi assim depois de virar marceneiro, de colocar esse ofício no centro da minha vida. Não houve outros artesãos de profissão na família, ainda que numerosa, à exceção do tio Nenê, o tio-avô que não cheguei a conhecer senão por umas poucas histórias. Saudade de quem não vi. Não herdei as ferramentas manuais, não cresci brincando na oficina, não fiz arco e flecha madeira: tenho alguma memória bem mais antiga. A marcenaria chegou de mansinho, semente bem leve que pousa, numa época em que eu precisava urgentemente de outra forma de viver. Veio no vento, certeira, encontrou um solo a seu gosto e se pôs a germinar.
Me dedico a entender algo sobre a madeira, um tanto autodidata por necessidade e circunstância, mas também por signo, por teimosia. A busca é construir algo prático, com sorte bonito, durável e confortável. Construir algo com a natureza. Buscar um material no mundo natural e uma tradição de manejo numa cultura. Unir natureza e cultura numa coisa só, e quem sabe assim ir desaprendendo a nossa bobagem fundante, ir diluindo nossa arrogância pueril de que somos algo à parte no mundo.
Não estão faltando cadeiras no mundo, nem mesas, nem nada do tipo. Pelo contrário. Milhões de robôs coloridos estão a produzir sempre mais e melhor, enquanto dormimos, ou tentamos dormir. Progridem num ritmo impensável. Executam a tarefa com a qualidade e exatidão para o qual foram criados, precisão atômica se for necessário. Eles não se cansam, e que a gente não se engane: podem fazer com qualquer padrão de qualidade, do pior ao melhor. Super robôs fazedores de tudo, fruto do engenho e trabalho humanos dirigido e focado, nossas criações técnicas concebidas e combinadas para nos substituir. A verdade é que, frente às máquinas modernas, nossos corpos humanos são há tempos obsoletos como reprodutores de qualquer coisa material. A julgar somente pela coisa, nós em breve não faremos mais nada das nossas mãos.
Por que fazer então?
Mais que nunca, o valor único do trabalho artesanal não está no tangível da peça, mas no campo sensível da conexão entre as pessoas. Está no sutil do amor artefato. Somos veículo para um conteúdo simbólico: só podemos ser Humanos em conjunto, em atos de cuidado. As máquinas reproduzem aos milhares e podem fazer à perfeição, mas elas não se importam. A cadeira artesanal, por outro lado, corporifica o cuidado de quem a fez. A presença, o tempo dedicado, o esforço de pessoas limitadas para aprender e fazer bem feito. Consideração e habilidade humana tornadas tangíveis. Experimente um tecido artesanal de perto, observe a urdidura e a trama, e você se conecta de uma forma silenciosa, mas literal, a um fio milenar de fiadoras e tecelãos que se importaram. O mesmo para um pão artesanal, uma mesa, um poema, uma chícara. Para isso, entretanto, você precisa se educar sobre essa história de mãos fazedoras, sobre o seu papel no que somos.
O ser moderno está profundamente adoecido de velocidade, virtualidade e ausência. Sociedades modernas nos coagem dioturnamente a consumir, descartar e consumir novamente. Nos relegam ao posto humilhante de consumidores da Terra. Pouco importam a origem, o processo, a cadeia de interações que levam ao produto. Tudo vira uma commodity, mais um item indiferenciado em mais um mercado racionalista. As exceções, que existem, mais fazem confirmar a regra: o vetor da velocidade toca em tudo, e a cada dia acelera. A habilidade artesanal é então um contraponto necessário que nos situa, materializa, aterra. É o caminho longo e incerto de conhecer um idioma, um material, uma tradição criadora, até não ser mais capaz de não notar sua presença, não sentir seu valor na nossa formação. É se aproximar do mundo material de modo a alterar nosso modo de perceber o contexto integrado que habitamos. Conceber e criar o seu melhor com as mãos é dar um corpo físico ao seu amor pela floresta, pela terra, pelo outro.
Mãos artesãs realizam pequenos atos do amor concreto, cuidado tátil e presente. Atos curadores que unem o amor fugidio ao aqui e agora da matéria. Antídoto para tempos de metaverso. Práticas manuais de atenção e zelo estão sendo redescobertas, e vão se somando gota a gota, recompondo alguma sanidade na nossa distopia de telas perfeitas. Situando pessoas como parte do um todo orgânico. Reestabelecento uma trama social em escala humana. Por isso precisamos fazer com as mãos, trabalhar como verdadeiros amadores. Afinal, como ouvimos do nosso poeta pernambucano, qualquer amor já é um pouco de saúde.
Uma reflexão super ampla. Esperando com ansiedade pela revista. E viva a tecnodiversidade! Ivan Gomes