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Colheita

Atualizado: 10 de jan. de 2022

No fim do ano bateu uma ventania aqui como eu nunca havia visto. Fechamos todas as janelas e ficamos vendo as pedras de gelo baterem no telhado, nos vidros, os bichos procurando um abrigo. De repente o pinheiro de araucária que fica exatamente na frente da nossa casa se partiu em dois, literalmente rompido no meio da sua altura, se manteve no ar primeiro e foi depois caindo de lado, enorme, lentamente tombando, até acabar virado com o topo para baixo, a uns bons metros da sua raiz. Se moveu pelo ar como se fosse um trevo minúsculo retirado da grama com a ponta dos dedos, e colocado de lado. Está assim ainda. Partido ao meio, a copa caída ainda verde, embora já sem o brilho escuro do dia anterior. A cena mexeu muito comigo, e agora resisto ao impulso de “limpar” o dano, tirá-lo dali. Me aproximo e vejo a casca grossa rasgada, o interior do tronco exposto com anéis de células compridas, muito claras e muito úmidas. Até ontem essas células em forma de dutos levavam água e nutrientes para cima, circuladas por outras, mais novas, que levavam açúcares para baixo, dia e noite. Milhares de brotos de folhas começavam a se abrir, cada um na sua missão de painel à base de luz, captador de calor e gás carbônico, emissor de oxigênio e água em vapor. Tecnologia solar revolucionária, disruptiva sem dúvida, que criou e segue criando solos férteis e a única atmosfera rica em oxigênio de que se tem notícia.


A árvore caiu, estando viva está sujeita, é um acidente. Verdade, mas não tão simples. Do ponto de vista da árvore pode até ser um acidente. Viveu inteira e com saúde até que se encontrou na hora e lugar errados. Do meu ponto de vista entretanto, por trás da janela, não tem nada de acidental: resulta das nossas escolhas. Não somente das minhas, feitas ultimamente e localmente desde que resolvemos viver por aqui, mas minhas como parte do coletivo humano que habita este planeta e compartilha este momento histórico. Penso que a nossa geração perdeu o álibi do não saber. Estamos vivemos os anos em que emergiu o consenso sobre os impactos que temos, como espécie, sobre o todo da vida na Terra. Agora nós sabemos. E isso muda tudo. Sim, alguns negam, e alguns sempre negarão. Esta saída ocorre aos covardes, aos que optam por não encarar o chamado de frente, se omitem da sua responsabilidade ou, pior, tiram proveito do caos. Foi assim com a pandemia: o negacionismo prosperou por alguns meses, depois foi perdendo espaço, à medida que os aprendizados sobre o fenômeno se acumulavam, e resistindo só nos seus enclaves mais auto-contidos e delirantes. Na questão da emergência climática que se apresenta, o negacionismo ainda nada de braçadas. O fato é que sabemos que o clima modificado do planeta leva, entre outras coisas, a mais eventos climáticos extremos. É matemático: inundações, secas, extremos de temperatura, ciclones ocorrerão mais vezes e em mais lugares. O que aconteceu ontem é que eu presenciei um desses eventos no sentido exato da palavra: estava presente. Com medo do vento, que obviamente poderia ter levado muita coisa embora, como tem levado mundo afora. Presenciei perplexo e totalmente impotente. Presente: sem telas, sem análises, sem mediação. Coisa tão rara: não passado, nem futuro, presente, olhando.


A árvore enorme e perfeitamente sadia se rompeu ao meio porque não evoluiu para lidar com ventos como esse. Nos últimos anos, três outras araucárias tombaram sob a força do vento nos arredores da nossa casa, essas inteiras, raiz e tudo. Na queda, derrubaram outras árvores menores, e no local das suas raízes, cada uma deixou um buraco enorme no chão. Aprendemos com os vizinhos que nunca haviam visto um pinheiro cair assim; por aqui pinheiro significa araucária. Passaram suas vidas todas aqui, assim como os seus pais, entre araucárias aos milhares, e nos dizem, também perplexos, que pinheiro não tomba assim, inteiro. Pois não tombava. Na nossa experiência tem caído um por ano só no nosso lote, pedaço do mundo que desde outro dia nos pertence - reflito (reflita) sobre a loucura completa que esse pertencer representa. A primeira queda achei que tivesse sido acidente, o segundo me deixou pensando se os pinheiros não estavam sujeitos a ventos demais, canalizados de alguma forma, se não tinham alguma doença que comprometesse sua resistência. As quedas de ontem, vistas de perto, não deixam muita dúvida para quem busca aprender a histórias das árvores, as histórias das florestas. Nas últimas décadas, e em todo lugar, os furacões estão ganhando muita força, dados os extremos de pressão atmosférica (que resultam de extremos de temperatura e umidade) e as terras cada vez mais despidas de vegetação alta e densa. Meticulosamente o que vemos acontecer nos nossos arredores aqui, de longe e de perto, fruto das nossas escolhas como coletivo humano. Centenas de vezes mais numerosas que as araucárias caídas são as que são derrubadas com nossas motosseras a gasolina, puxadas por nossos tratores e levadas nos nossos caminhões a óleo diesel, serradas com engenho nas nossas serrarias de energia elétrica e comercializadas à luz do dia, de segunda a sexta, das 8h às 17h, todos sabemos onde. Crimes perante a lei, saques diários ao patrimônio natural do Brasil e do mundo, de tão corriqueiros não têm nossa atenção. Seguimos entretidos, só que agora perdemos o nosso álibi: não resta mais dúvida de que florestas nativas regulam o clima. Agora, para não ver é preciso olhar para cima, sempre e bastante, buscar conforto em alguma conspiração que localiza a responsabilidade em algum outro. E batemos mais um recorde de desmatamento. Tanto disso se fez na Mata Atlântica desde 1500, tanto se faz hoje no cerrado e na Amazônia, que o nome acidente já não cabe. São escolhas. Estamos escolhendo nosso carro, nosso almoço, nossos representantes. Estamos (es)colhendo este presente, e nele os ventos são muito fortes.




Hoje é o último dia do ano, que 2022 traga a esperança de dias melhores, de mais saúde, de escolhas conscientes e da alegria dos reencontros.

Ao longo do próximo ano, pretendemos trazer reflexões e comentários sobre trabalhos manuais, madeiras, florestas e também sobre nosso papel nesse contexto.


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