O que existe em comum entre o ateliê da ceramista, a oficina do marceneiro, a sala das tecelãs e a pequena cozinha em que se preparam conservas? Que lugar existe para esses trabalhos no mundo de hoje?
Me interesso bastante por essas perguntas, acho que elas podem ser bem reveladoras. Por séculos a fio, trabalhores como esses que citamos foram capazes de abastecer as famílias com os alimentos e os objetos funcionais de que necessitavam. Trabalhadores mais experientes ou escolas de ofícios formaram gerações de artesãs e artesãos. Arranjos locais surgiram para o suprimento de matérias-primas e ferramentas, e também localmente circulavam os bens produzidos em pequena escala.
Não creio que artesãos desses tempos se perguntavam se trabalhavam com as mãos ou com a mente. Simplesmente tinham que resolver uma longa série de desafios do mundo material. Tinham que se familiarizar com a física e a química dos seus artefatos, tinham que adquirir intimidade com os tempos e os modos da argila, da madeira, do fio e do fruto. E é certo que não teriam chegado muito longe sem que tivessem engajado a todo momento o melhor da sua capacidade de aprender, de experimentar atentamente e observar nuances mínimas nos resultados, de se lembrar dos relatos dos que vieram antes e traçar os paralelos com a sua situação específica, de fazer conexões mentais inúmeras para imaginar soluções e novas possibilidades. Simplesmente não teriam evoluído como artífices e participado ativamente da longa tradição dos seus ofícios sem que o intelecto estivesse a todo vapor. E sim, as mãos sabedoras de muitos segredos, cobertas de barro, serragem e terra, incorporaram ferramentas como suas extensões e moldaram, formaram e conformaram seus materiais com finalidades muito claras, de resolver problemas muito diretos e bem entendidos.
Por tudo isso me intriga como podemos hoje olhar para esses trabalhos e rapidamente enquadrá-los, todos, no caixote mal formado dos trabalhos “manuais”. Como se algo de tão desafiador e sutil pudesse ser empreendido produtivamente sem inteligência, presença e foco constantes. Sem todo um domínio da imaginação e controle espacial e motor. Talvez a maior alegria que tive nos anos recentes em que passei a trabalhar com as madeiras tenha sido justamente combinar o que a mente sabe e pode com tudo aquilo que só é dado às mãos saber. Combinar o nosso intelecto, que sim é capaz de muito, inclusive de nos levar muito longe, com nosso corpo, que nos situa em um único lugar da Terra e num dado tempo, um só dia, inescapável.
Muito já se falou sobre o estigma que paira sobre os trabalhos que incluem o corpo. Certamente inclui nosso passado recente de escravidão em que povos foram subjugados e gerações escravizadas se viram sujeitas a rotinas muito mais que degradantes. Passa também por nossa realidade atual em que tantos se veem obrigados a empreender trabalhos indignos porque não encontraram vez entre os trabalhores da informação. O mundo moderno organizou vastíssimas cadeias produtivas, e viabilizou a produção em escalas antes impensáveis. No processo, reduziu imensamente os custos unitários de produção, democratizou o acesso a bens quase sempre de qualidade muito inferior, exigiu capitais e concentrou riquezas e, mesmo sem ter atendido muitas das necessidades mais básicas, segue criando um sem fim de desejos. No moderno mundo regido pelas finanças, o artesão e sua oficina se veem obsoletos. Uma fábrica moderna de camisas irá despachar por dia o que uma comunidade de alfaiates não produzirá em uma vida. Uma fábrica de cadeiras automatizará cada etapa produtiva e levará ao mercado unidades identicamente frágeis que o marceneiro não terá sequer tempo de contar.
Essa história dos nossos últimos séculos é tudo menos simples, e esses desenvolvimentos fabris nos afetam a todos de incontáveis formas. Seus efeitos não são todos bons nem todos ruins. Eu também me beneficio de tudo isso diariamente desde que nasci. O que mexe comigo é ver que a lógica moderna nos leva a não fazer de fato mais nada com as nossas mãos, já que as máquinas fazem sempre “mais e melhor”. Às pessoas cinzas normais cabe seguir consumindo.
Gosto de pensar que a artesã habita outro espaço. Ela não se move pelo imperativo moderno da “eficiência”, mas pelo desafio pessoal de dominar seu ofício, pela curiosidade de entender a fundo seu material e ver até onde pode chegar. Digo isso com o cuidado de não cair no romance, na idealização das pessoas abnegadas que fizeram um voto de pobreza e se tornaram imunes às pressões do mundo. O universo dos artesãos é vasto e variado, com indivíduos movidos por todas as peculiaridades típicas do que é vivo. O que é certo é que ocupam um lugar à margem da racionalidade material moderna, que nos reserva o assento (des)confortável de consumidores de mãos limpas, folheando o vastíssimo cardápio eletrônico de cores e fragrâncias artificiais.
Penso que uma versão melhor de nós mesmos é feita de pessoas curiosas e sutis, dedicadas a descobrir e desenvolver suas habilidades físicas, motoras e mentais, interessadas pelo mundo orgânico e versadas nos processos vivos à nossa volta. Me convenci de que nos trabalhos ditos manuais existe um caminho de volta. Um caminho dos mais ricos e apaixonantes. Para falar a verdade, um caminho necessário.
Ficaremos felizes se pudermos lembrar as pessoas que estão vivendo quase só em função do cérebro de que elas também podem encontrar alegria em novos-antigos trabalhos. Que o trabalho manual não é em nada menor. Que muitas vezes pode ser mais desafiador e prazeroso, justamente porque nos convida a integrar mãos que aprendem ao compasso das nossas sempre sobrecarregadas mentes. Que existe uma gratificação enorme em ter interagido com um material e dado forma à algo útil, simples, bonito e bem feito. Que o caminho do artesão é cheio de pequeníssimas descobertas felizes, alegrias que te ocorrem à medida que você sente que está se tornando habilidoso e capaz, em uma lida que te traz a todo momento para o aqui e o agora.
Faça um bolo. Entre num curso de cerâmica. Como uma criança, cubra seu corpo de serragem.
Excelente e necessária reflexão, amigo!
Me arrepia quando leio um ensaio que é menos uma defesa do que um convite. Textos-convites, que além de reflexões tocam os desejos e despertam a curiosidade são tão, mas tão fabulosos. Eu fico verdadeiramente agradecido. Uma mensagem na garrafa, que espero encontrar mais pessoas que sentem que precisam sentir um pouco mais: habilitar os sentidos todos - pra além dos 7 ocidentais - que são capazes de forjar memórias impossíveis de explicar com palavras. Pq é de corpo que estamos falando, essa unidade "psicobiossocial" capaz de tanto. Mente, mãos: fragmentos de algo bem mais amplo.
Que essas mensagens na garrafa, que esses ensaios-convites possam chegar às pessoas certas como rizomas que se espalham sob a serrapilheira e que possamos compor…